domingo, 13 de setembro de 2009

- A técnica ergue uma sobrancelha e espreme um pouco de gosma transparente na minha barriga. Franzindo a testa um pouco, ela pressiona o negócio do ultra-som na minha pele, e instantaneamente uma imagem turva, em preto-e-branco, aparece na tela.

Não consigo respirar.

É nosso neném. Dentro de mim. Lanço um olhar para Luke, e ele está grudado na tela, hipnotizado.


***


- Por que você acharia que há alguma coisa acontecendo?

- Por quê? – Encaro-o. – Luke, você está falando sério? Por onde vou começar? Todas as vezes que você saiu com ela, só os dois. Todos aqueles recados em latim, dos quais você não queria falar comigo. E todo mundo ficou muito esquisito comigo no escritório... e eu vi vocês sentados juntos na mesa dela... e você mentiu na noite do Finance Awards... – Minha voz está começando a falhar. – Eu sabia que você não estava lá...

- Menti porque não queria preocupar você! – Luke parece mais abalado e com raiva do que jamais vi. – Meus funcionários estavam esquisitos com você porque eu mandei um e-mail para todos dizendo que ninguém, absolutamente ninguém, deveria falar de problemas da empresa com você. Sob pena de se demitido. Becky... eu estava tentando proteger você.


***


- Sabe de uma coisa, Becky Bloom? Você vai ser uma tremenda mãe.

- Ah! – Fico vermelha, tomada totalmente de surpresa. – Verdade? No bom sentido?

Luke atravessa a cozinha e pousa as mãos gentilmente na minha barriga.

- Esta pessoazinha tem muita sorte – murmura ele.

- Só que não sei nenhuma cantiga de ninar – digo meio triste. – Não poderei fazer o neném dormir.

- As cantigas de ninar são superestimadas demais – reage Luke, cheio de confiança. – Eu lerei para ele matérias do Financial Times. Isso vai fazer com que ele apague.


***


- Não fiquei apavorado! – grita Luke, exasperado. – Eu percebi que você não era a pessoa com quem eu queria ter filhos. Nem com quem passar o resto da vida. E foi por isso que terminei!

Venetia parece ter levado um soco. Por alguns segundos, fica sem fala – então seus olhos se concentram em mim com tamanha agressividade que eu me encolho.

- E ela é? – pergunta, com um gesto selvagem. – Essa coisinha desmiolada, consumista... é com ela que você vai passar o resto dos dias? Luke, ela não tem profundidade! Não tem cérebro! Só se importa com as compras, as roupas... e as amigas...

O sangue sumiu do meu rosto, e fico meio trêmula. Nunca ouvi tanto veneno.

Olho para Luke. Suas narinas estão abertas, e uma veia lateja na cabeça.

- Não ouse falar assim de Becky. – A voz é tão metálica que até eu fico meio apavorada. – Não ouse.

- Qual é, Luke! – Venetia dá um risinho de zombaria. – Admito que ela é bonita...

- Venetia, você não sabe do que está falando – diz Luke, cortando-a.

- Ela é mais do que frívola! – grita Venetia. – Ela não é nada! Por que, diabos, você se casou com ela?

Há um ofegar generalizado no quarto. Ninguém se move durante uns trinta segundos. Luke parece meio atordoado por lhe fazerem uma pergunta tão explícita.

Meu Deus, o que será que ele vai dizer? Talvez diga que foi por causa da minha maravilhosa capacidade culinária e das minhas respostas espirituosas.

Não. É improvável.

Talvez diga...

Para ser honesta, estou meio travada. E se eu estou travada, Luke também deve estar.

- Por que eu me casei com Becky? – ecoa ele finalmente, numa voz tão estranha que subitamente acho que ele também deve estar se perguntando, e percebendo que cometeu um erro terrível.

De repente, me sinto meio fria e meio apavorada.

E Luke ainda não falou.

Ele vai até a pia e se serve de um copo d’água, enquanto todo mundo olha, nervoso. Por fim se vira.

- Você já passou algum tempo com Becky?

- Eu já! – diz Suze, como se fosse ganhar um prêmio. Todo mundo se vira para ela, que fica vermelha. – Desculpe – murmura.

- Na primeira vez que vi Becky Bloom... – Ele pára, com um sorriso minúsculo nos lábios. – Ela estava perguntando ao responsável pelo marketing de um banco por que eles não produziam talões de cheques com capas de cores diferentes.

- Está vendo? – Venetia balança a mão, impaciente, mas Luke nem se abala.

- No ano seguinte, eles produziram talões de cheque com capas de diferentes cores. Os instintos de Becky não se comparam aos de ninguém. Becky tem idéias que ninguém tem. Sua mente vai a lugares onde a de ninguém vai. E algumas vezes tenho sorte de acompanhá-la. – Os olhos de Luke encontram os meus, suaves e calorosos. – É, ela faz compras. É, ela faz coisas malucas. Mas me faz rir. Faz com que eu desfrute a vida. E eu a amo mais do que qualquer coisa no mundo.

- Eu te amo também – murmuro, com um nó na garganta.

- Ótimo – diz Venetia, com o rosto pálido. – Ótimo, Luke! Se você quer uma desmiolada, superficial...

- Você não faz idéia, porra, estão cala a porra dessa boca! – Subitamente, a voz de Luke é como uma metralhadora. Mamãe abre a boca para protestar contra aquela linguagem, mas ele está tão lívido que ela fecha de novo, nervosa. – Becky tem muito mais princípios do que você jamais teve. – Ele está olhando para Venetia com desprezo. – Ela é corajosa. Ela coloca as outras pessoas à frente de si própria. Eu não poderia ter passado por estes últimos dias sem ela.

(...)

- Ah! – berro. – Ah! Estou vazando!

Meu Deus, é a sensação mais esquisita. Alguma coisa, em algum lugar, simplesmente arrebentou – e uma poça d’água está se formando aos meus pés. Não consigo parar.


***


- Oi. Você está acordada. – Luke levanta a cabeça na poltrona em que esteve cochilando e coça os olhos. Está barbado, o cabeço desgrenhado e a camisa toda amarrotada.

- Ahã.

- Como ela está?

- Bem. – Não consigo evitar um sorriso lambendo meu rosto quando a olho de novo. – Perfeita.

- Ela é mesmo perfeita. Você é perfeita. – O rosto dele tem uma espécie de euforia distante enquanto me olha, e sei que Luke está revivendo a noite passada.




- Aqui estão algumas roupas para você, Becky querida. – Mamãe levanta uma enorme bolsa de viagem, cheia de roupas, e põe numa cadeira. – Eu não sabia o que você ia querer, de modo que saí catando...

- Obrigada, mamãe. – Abro o zíper e tiro um grosso cardigã que não uso há uns cinco anos. Depois vejo outra coisa. Um brilho familiar, azul-claro, com contas, uma maciez de veludo.

Minha echarpe. Minha preciosa echarpe Denny and George. Ainda me lembro do instante em que pus os olhos nela.

- Ei, olha! – Tiro-a, tendo cuidado para não arrancar nenhuma conta. Não uso há anos, também. – Lembra disso, Luke?

- Claro que lembro! – O rosto de Luke se suaviza ao ver. Depois acrescenta, totalmente cara-de-pau: - Você comprou para sua tia Ermintrude, pelo que me lembro.

- Isso mesmo – assinto.

- Uma tragédia ela ter morrido antes de poder usar. O braço dela caiu, não foi?

- A perna – corrijo.

Mamãe esteve ouvindo essa conversa, perplexa.

- Tia o quê? – pergunta ela, e não consigo evitar um risinho.

- Uma velha amiga – responde Luke, enrolando a echarpe no meu pescoço. Ele a olha por um momento , numa espécie de espanto, depois olha o neném . – Quem imaginaria...

- Eu sei. – Manuseio a ponta da echarpe. – Quem imaginaria?

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